2 de novembro de 2009

Choveu

Quando o céu escureceu, encoberto por uma espessa camada de nuvens cinza, ele adorou. A chuva era a única coisa que ainda o fazia sentir realmente feliz. Havia algo sobre o cheiro de terra molhada. Havia algo na melodia suave das gotículas de água cortando o vento, beijando o chão. Tudo parecia tão limpo depois da chuva... As monções eram uma das poucas boas lembranças de sua infância. Sua mãe fazia seu prato preferido, seu pai voltava mais cedo pra casa, e o telhado sussurrava canções de ninar a noite inteira. A vida era boa quando chovia. Ele sempre tinha vontade de sair e dançar da chuva, mas era difícil faze-lo, devido ao excesso de proteção em casa. A primeira vez que ele havia dançado na chuva foi – quando estava longe de casa – jogando futebol com os amigos. Definitivamente, a chuva tinha dado a ele os momentos mais memoráveis de sua vida.

Estava chovendo agora. Ele estava sozinho em sua casa – um homem de setenta anos –, sua esposa morrera há vinte anos. Ele a amava muito, mas o destino o traíra – ao leva-la em um acidente cruel. Seu filho estava ocupado demais com sua própria vida para se preocupar muito com um homem mimado de idade, quiçá para pensar em visitá-lo. Ele tinha cansado da vida da cidade e havia se mudado para o campo logo após a aposentadoria. Tinha amigos lá – desde infância. Um deles tinha cansado (ao contrario dele) das colinas, por isso se ofereceu para lhe vender a casa. Era um bangalô calmo – com vista para um pomar de laranja. Ele tinha se apaixonado pela casa a primeira vista e tinha comprado. Além disso, chovia muito por ali...

Era seu aniversário – ele tinha virado um setenta. O cozinheiro (um homem cuja família inteira tinha vindo a servir às gerações da família do velho) tinha preparado sua comida preferida (o cozinheiro era bom, mas não tão bom quanto sua mãe), mas não o fez companhia no jantar. Após a – solitária – refeição, o velho saiu de casa. Foi sentar-se na varanda. O sol se põe cedo nas montanhas, por isso já estava escuro, e o céu começava a se derramar sobre a grama. Ele olhou para as nuvens com um sorriso nos lábios – como quem agradecia pelo presente – e começou a olhar para trás, para sua vida. Ele tinha sido bem sucedido – de fato, muito bem sucedido. Um estudante brilhante, um trabalhador assalariado – muito respeitado – para, em seguida, abrir seu próprio negócio e receber elogios em toda parte. Costumavam falar dele como “o homem com o toque de ouro” –, ele podia transformar quase todo negócio falido em um negócio lucrativo. Mas a morte de sua esposa mudou tudo isso. Ele perdeu o seu toque. Ele perdeu o entusiasmo pela vida, perdeu sua autoconfiança e começou a desistir do seu trabalho. Foi muito irônico: o homem que tinha tudo, perdeu tudo. Dizem que ele foi para o campo para fugir do que perdera – dos fantasmas dele.

As gotinhas continuavam a bater, sem tréguas, contra o gramado a sua frente. Ele olhou-as com um espanto repentino: aquilo era sobre viver em ciclos. A água descia, evaporava, subia, depois descia novamente. Ele fez uma pausa para pensar – “essas gotas nunca se cansam?”.

Uma tempestade estava chegando (ele podia sentir em seus ossos), e o cozinheiro o tinha alertado sobre ficar fora até tarde – mas o velho era persistente. Ele estava indo sentar-se na chuva. Na chuva, que fora uma segunda mãe pra ele.

O vento uivava. O velho tinha deslizado lentamente para o sono, e agora sonhava. Sonhava com sua esposa. Ela estava lá fora, na chuva, chamando-lhe com um sorriso no rosto. Ele queria chegar até ela, mas não conseguia. Ele estava tentando uma e outra vez – mas suas mãos estavam fora de alcance. Seu olhar lentamente mudou para um de desânimo. Não podia suportar perdê-la novamente. Ele fez outra tentativa – de alguma forma, desta vez, ele conseguiu romper a barreira que o puxava de volta e segurou a mão dela. Ela não falava nenhuma palavra – seu sorriso dizia tudo. Ele olhou para o céu e teve a impressão de que as nuvens estavam sorrindo para ele também. Tudo ao seu redor era feliz, e o júbilo invadiu suas feições – outrora desanimadas.

O cozinheiro encontrou seu corpo na manhã seguinte. Ele ainda estava na varanda. Seu corpo estava duro e frio. Seus olhos estavam fechados. Ele tinha partido durante o sono –, pensou o cozinheiro. Mas havia algo estranho em seu rosto. O que era? Sim, tinha que ser aquele sorriso. Era tão extraordinário...

27 comentários:

Tatiane Trajano disse...

A chuva sempre me deixa em paz comigo mesma.

Dançar na chuva... eu quero!
...deixando a água lavar,purificar...

Ele morreu com o sorriso dos amantes, dos que se reencontram para eternidade.

Beijo-beijo

*eu add vc.

Thai Nascimento disse...

hey, que conto maravilhoso!
Emocionante e muito bem escrito. N sei s é a forma certa de dizer, mas essa é um ótimo modo de morrer: sentido ir-se ao encontro da pessoa amada e sendo purificado pela chuva*

César Schuler disse...

você tem o dom, tá?

"Estarei com você, pra te ajudar
mesmo se a tempestade chegar"


lindo (:
é, ele tinha que morrer mesmo

Anônimo disse...

A chuva é minha única alegria que vem de cima, só de sentir o cheiro e os pingos finos já fico feliz.

Tiago Fagner disse...

Dá gosto a tua capacidade de transformar situações cotidianas e vidas rotineiras em belas histórias! Ainda vou ler um livro escrito por você Natália! Bjao!
Teu mar também deve ser um pouco do mar de muita gente!

Mariana Andrade. disse...

me fez bem, depois mal, depois bem.. tudo. e gostei muito disso.
criatividade pura!
muito bom mesmo o seu conto.

;* seguindo

Marcelo Mayer disse...

tô contigo neste texto!
ds coisas mais belas... nada como uma nuvem carregada e vento

Tiago Torigoe disse...

Ahh, adoreiii *-*
EU comentei no otro post, achando que era esse...depois vê no otro ok? :D

Anônimo disse...

Engraçado que ontem de noite eu estava pensando em chuva. Não que eu goste muito, mas lembrei da última vez em que corri na chuva e beijei alguém na chuva. Tão bom... E há tanto tempo.

Agora fiquei nostálgica com o seu texto.

:*

D. Rodriguez disse...

Nostálgica... Assim também estou!

"A chuva que é água purifica a alma e melhora o mundo, nem que seja só por um segundo"

D. Rodriguez disse...

quer dizer...Noltálgico!

Unknown disse...

Lindo conto, lembrei do filme "Diário de uma paixão".

A chuva sempre trás uma felicidade, mesmo quando ela faz nossos olhos chover.

Abraço!

gabi disse...

eu gosto de frio, chuva e dia nublado.

mas gosto de gostar estando viva.

/ teu blog tá sem gracinha (isso não é critica, nem insulto, nem nada) mas eu gostei desse verde que você colocou.

Lucas Lima disse...

muito bom, pra variar, me imaginei nos meus 70, lembra a música último romance, um pouco,
bacana
bjs e bons dias

Anônimo disse...

foi gostoso de ler e absurdamente bonito.

eu gosto de chuva. sinto que ela 'renova' a minha alma.

:)

Matheus Sobral. disse...

O final foi previsível, mas absurdamente bem escrito. No final, tudo se encaixou, e ele foi dançar na chuva uma última vez.

Foda!

Katrina disse...

acho que era o sorriso de quem pode ter uma segunda chance

Maria Midlej disse...

me arrepiou.

Erica Vittorazzi disse...

Demais o seu texto. Confesso que não gosto de ler textos longos em blogs, mas o seu não consegui tirar os olhos.

Você escreve muito bem, menina! Parabéns!

Anitha disse...

Acabei de ler o seu conto com um sorriso no rosto.
Muito bom!!!
:)

Bruno Carvalho disse...

Olá Natália, fico feliz por ter provido inspiração para um texto tão bonito, realmente a chuva é meu fraco :D

Apareça sempre lá no blog, que o seu já está nos meus favoritos!

Um abraço,
Bruno Carvalho

Anônimo disse...

Boa, sempre pensei em morrer na chuva, ela sempre lava tudo mesmo.

Gostei :)

;*

Érica Ferro disse...

Você nos prende, menina! Nos prende!

Que texto mais lindo, mais intenso.

Adorei o final. Eu adoro coisas assim, com finais dramáticos, mas com uma certa beleza.

Parabéns.

Beijo.

Jéssica Trabuco disse...

Ir embora sendo que a última coisa vista e sentida é aquela coisa que te faz bem deve ser muito sereno.
Texto muito sensível esse... gostei.
Ele deu seu melhor na vida, com certeza foi sem se sentir arrependido de nada.

Parabéns!

Tatiane Trajano disse...

Ei moça, some não!
Eu quero te ler...

*mais selo pra vc lá no BaLaio.

Beijos

gabi disse...

esqueceu o pc na chuva?

Elizabeth disse...

meu primeiro comentário no seu blog como possuidora de um blog!

sua vinheta tá suuper legal :)

P.S: ainda não sei comentar em blogs ¬¬

Quem me segue (se perde comigo)