18 de dezembro de 2009

Síndrome de Raul

Sou a mosca na sua sopa
Sou a roupa daquela moça
Que você sempre quis ver nua

Sou a mosca no seu ouvido
Sou o zumbido insuportável
Que o impede de dormir

Sou a mosca na sua merda
Que pousa na sua comida
E lhe provoca indigestão

Sou a mosca morta
Parada na sua porta
Implorando por seus restos

Mas você nunca me nota.


16 de dezembro de 2009

Kiss me

Eu tinha dezesseis anos. Todas as minhas amigas já tinham beijado, menos eu. Não porque eu fosse feia e nenhum garoto quisesse me beijar, mas porque eu tinha muito medo.
Eu sabia todos os passos, desde o grau de inclinação da cabeça à altura de elevação do pé. Eu já tinha assistido centenas de filmes, treinava com gelo, laranja, manga, e fazia todos os testes de “você está preparada pra beijar?” da Capricho, Atrevida, Tititi e qualquer outra revista teen que pudesse me alienar do mundo. No espelho eu ficava ensaiando uma forma sexy de fechar os olhos - sem forçar demais, pra não parecer que não estava gostando, mas sem forçar de menos, pra não ficar piscando. Eu sabia que não podia fazer muito biquinho pra não parecer iniciante, e não podia ficar girando a língua feito hélice de helicóptero também. Levava na bolsa pastilhas de menta, hortelã e canela, além de escova de dentes e fio dental. Quando saía, nunca comia coisas com cebola, alho ou ovo. E o principal: eu sabia de cor a lista de meninos que eu supostamente havia beijado, porque se assumir como “BV” é suicídio pra meninas de dezesseis anos.

Eu tinha passado os últimos quatro anos evitando qualquer aproximação com o sexo oposto. Sempre que algum garoto demonstrava interesse em mim, eu inventava um namorado lindo que morava no acre. Isso até conhecer Marcos Alexandre, o novo amigo do meu irmão mais velho. Ele não era bobo como os meninos da minha sala. Era alto, forte, e tinha barba. Toda vez que eu olhava pra ele, eu imaginava a barba dele roçando no meu rosto, me fazendo cócegas, enquanto ele sussurrava barbaridades em meu ouvido. Quando eu pensava nisso dava um arrepio no corpo todo, uma agonia quente que vinha subindo desde o pé, e eu tinha que cruzar as pernas pra conter a onda de... tesão. Eu sei que é estranho uma menina que nunca beijou falar em tesão, mas eu tenho pra mim que sexo é bem mais fácil que beijo (e espero que seja mesmo).

As coisas com Marcos Alexandre ficaram mais complicadas quando ele começou a reparar em mim. Ele passava na minha casa à procura do meu irmão, mas quando meu irmão não estava, em vez de ir embora, ele ficava conversando comigo durante horas. Nós ríamos muito, e quase nos beijamos uma vez, mas eu não tive coragem. Me fiz de doida e virei o rosto. Fiquei me sentindo uma idiota na hora, mas depois achei que tinha sido melhor assim. Eu estava há muito tempo sem escovar os dentes, e nós tínhamos comido amendoim com casca enquanto assistíamos à sessão da tarde – imagina se tivesse uma casca de amendoim bem no meu dente?

Um dia Marcos Alexandre me chamou pra ir a uma festa com ele. Na hora eu fiquei surpresa que um homem de vinte e um anos quisesse aparecer em público com uma menina de dezesseis. Isso me fez pensar que ele gostava mesmo de mim, o que era um sério problema, porque eu também gostava muito dele, e não queria de jeito nenhum perder a chance de dar meu primeiro beijo em alguém que eu gostasse. Prometi pra mim mesma que não teria mais medo. Vesti um vestido vermelho super decotado, prendi o cabelo – pra que ele pudesse beijar meu pescoço depois – e coloquei perfume nos lugares mais estratégicos. Escovei os dentes tantas vezes que minha boca ficou dormente, enchi minha bolsa de trident, e fiquei cantarolando uma música da Sixpence None The Richer até ele chegar.

Ele me pegou em casa, e quase nos beijamos novamente quando entramos no carro, mas eu quebrei o clima pra avisar que eu tinha que estar em casa antes das duas da manhã. Marcos Alexandre riu. Tenho quase certeza que ele já estava arrependido por ter chamado a mim pra acompanhá-lo, em vez de uma menina madura que o deixasse beijar em paz. Mas se ele estava mesmo arrependido, não demonstrou. Quando chegamos, e eu vi toda aquela gente se beijando, eu decidi que precisava de uma ajudinha. Esperei o garçom passar com as bebidas e virei um copo inteirinho de sei-lá-o-quê. Eu nunca tinha bebido na vida, então fiquei tonta na mesma hora, mas senti uma sensação tão boa de “eu sou dona do mundo” que virei mais três copos depois. Marcos Alexandre, que parecia impressionado com a minha performance de adolescente irresponsável, me chamou pra tomar um ar lá fora. Eu fui. Fui andando atrás dele, pra dar tempo de colocar um trident na boca, e quando chegamos à varanda – a noite estava linda – ele colocou a mão em volta da minha cintura e avisou: “vou te beijar agora”.

Parecia que um elefante dançava no meu estômago quando ele disse isso. Eu achei estranho que não fossem borboletas, como nos livros, mas só entendi o porquê quando senti todo o meu café da manhã, almoço e jantar subirem pelo meu esôfago diretamente pra minha boca. Marcos Alexandre já estava bem próximo a mim quando eu o empurrei pra frente e vomitei nos nossos pés.

Aquele foi o momento mais constrangedor da minha vida. Olhei-o como uma criança que acaba de quebrar o jarro mais caro da mãe, cobri o rosto e comecei a chorar, implorando – entre um soluço e outro – que ele me perdoasse por ter estragado seus sapatos. Foi quando eu senti uma mão erguendo meu queixo. Ele retirou minhas mãos, me puxou contra si, e me surpreendeu com o melhor primeiro beijo com gosto de vômito e temperado com lágrimas que alguém poderia me dar. Eu não tive tempo para fechar os olhos, meu pé estava nojento demais pra fazer qualquer movimento, e Marcos Alexandre, que nunca fazia a barba, decidira fazê-la justo naquela noite. Mas começou a tocar aquela música da Sixpence, e nós dançamos juntinhos sobre um chão de vômito que mais parecia um chão de estrelas... 
“Oh, kiss me beneath the milky twilight
lead me out on the moonlit floor
lift up your open hand
strike up the band and make the fireflies dance
Silver moon's sparkling, so kiss me”.

14 de dezembro de 2009

Passional

Permanece nos lábios
O asco de um novo último beijo
Talvez o último dos últimos
Talvez ainda não
Mesmo o primeiro, fora uma vez o último
O último primeiro
O primeiro último beijo
Incerto como tudo em ti

Meus dedos te tocam e não te sentem
Só tu me sentes
[como lava crepitando em tuas veias]
Mas saber do teu prazer me é prazer suficiente
Ainda que não permeie tua alma
Ainda que não transponha a muralha
Que tu ergueste em tua volta
Para que ninguém o faça
Senão ela

Ela que te faz invisível
Quando és na verdade tudo que se vê
Quando estás por toda parte
Tu e teu cheiro entorpecente
[que excita e transmuta meu corpo]

Colônia, suor
Reconheço-te pairando no ar
Adentrando cada um dos meus poros
Impondo sobre mim a tua presença insubistancial
Ora cravada em meu peito
Ora fluindo em minha mente
Que vai minguando devagar
Até saciar-se de pensar em ti

Em teus braços sou somente tua
E até quando nos braços dele
Sou também um pouco tua
Porque quando tu te vais
Sumido dentro da tua retração amarga
Levas contigo um pouco de mim
Que vai se perdendo nos outros seios em que tu te afogas
Nas outras bocas que tu beijas
No conhaque que tu insiste beber

E eu vou ficando vazia
Vazia que mim e de ti
Das vezes que tu não voltas

10 de dezembro de 2009

Do remorso

I
Remói o cérebro
ébrio do tormento etílico
típico do poeta inventado
interpretado no desejo decadente
de ser regente da própria vida
vendida a preço de banana
porque a grana é curta
e o olho é grande.

II
Enfarto fulminante da paz
que jaz na fumaça do fumo
- consumo que mata
consumindo a fome de morrer
- cadáver do sossego
no aconchego da mentira
e na mira da verdade.

III
Mordaça na boca da mente
dormente no silêncio
da iminência de falar
e entregar o pensamento mudo
com medo que os ouvidos do mundo
escutem os segredos imundos
entalados na boca do estômago.

9 de dezembro de 2009

Noites de um verão qualquer

Era uma noite escura de verão, quase não havia vento, e o mar dormia tranqüilo, coberto pelo manto negro. Mas algo me tirava o sono. Abri a escotilha para espiar a estrela do norte: ela brilhava no céu de poucas nuvens, olhando por mim como uma protetora silenciosa.
Como não conseguisse dormir, eu subi ao convés. Fingi para mim mesmo que queria apenas ver minha estrela guia mais de perto, mas eu sabia que não era isso. Meu corpo todo se arrepiava apesar da ausência de vento, meu coração batia na ponta dos dedos e minha respiração ofegava sem qualquer motivo aparente. Eu pensei que fosse algum pressentimento ruim; uma tempestade silenciosa que se aproximava, um monstro marinho faminto por minha carne dura. Pensei até em fazer uma prece – nesses momentos, acreditar em Deus parece conveniente –, mas minha atenção foi absorvida pelo canto que me inundou de repente. Era um canto diferente de tudo que eu já tinha ouvido. Não era doce, nem agressivo, nem melodioso, não era sequer afinado, era apenas uma profusão de notas e subnotas, indo e vindo dentro da minha cabeça, como ondas do mar. Era isso. O canto não me adentrou os ouvidos hora nenhuma, ele estava dentro da minha cabeça o tempo todo, feito fosse minha consciência acalentando meu cérebro cansado.
Eu sei o que vocês estão pensando. Eu também pensei que estivesse ficando louco. Não precisava ser grande intelectual pra saber o que aquele canto significava e pra saber que era impossível. Mas impossível é uma palavra abstrata, sem valor algum. Tudo é possível, mas o egocentrismo do homem transformou em mentira tudo aquilo que ele não sabe explicar, nomeou de impossível todas as possibilidades mais fantásticas. Mas eu sei disso agora. Naquela noite eu nada sabia.
O barco foi seguindo um rumo próprio, movimentando-se rápido e só, contra o vento e contra a correnteza, contrariando todas as leis físicas que eu tinha como certas. Eu vi a estrela do norte ficando pra trás e soube imediatamente que deveria fazer algo para impedir. Mas o canto em minha cabeça me chamava, e eu ia como um rato farejando queijo, mesmo ciente de que estava indo direto para a ratoeira. Era uma consciência inconsciente, entende? Não adianta saber das coisas, se não há força para resistir e controlar a situação.
O mar a noite é escuro, nada se vê através das águas negras senão o reflexo da lua. Mas naquela noite sem lua, outro astro tomou seu lugar. Era uma estrela-do-mar, por assim dizer. Uma fada das águas, meio peixe, meio gente. A lenda que todo pescador sonha em encontrar, e estava ali, diante de mim, flutuando sobre as águas. Os cabelos dela eram de uma cor entre marrom e o dourado, a pele era branca feito folha de papel, e os olhos eram notívagos e hipnóticos. Eu a olhei por um minuto – que passou lento como se fosse um ano –, e quando o fiz o canto ficou mais alto e mais claro. Ela estava tentando me dizer algo, embora sua boca nem fizesse menção de se abrir.
“Feche os olhos” Eu a ouvi dizer dentro da minha cabeça. E assim eu fiz. Fechei os olhos pensando que ia ver tudo preto, mas minhas pálpebras pareciam que eram transparentes. Eu estava de olhos fechados, mas continuava a vê-la. Seus cabelos dançavam no vento, e os reflexos nas gotas de água que espirravam em volta dela lembravam confete de carnaval recortado em papel laminado. Eu estava maravilhado, quando percebi que ela se aproximava de mim, mais e mais. Senti que uma escola de samba passava no meu peito, quando os lábios dela tocaram os meus. Tinha o gosto do meu doce preferido, e os cabelos dela, que se enroscaram no meu corpo todo, tinham cheiro de praia. Ela me envolveu naqueles braços finos e eu me entreguei como uma virgem que se submete ao macho impassível.
Acordei estirado na areia, com o sol cegando meus olhos. Meu barco nunca foi encontrado, e ninguém sabe como eu cheguei á costa. Mas eu ainda sinto na boca o gosto do meu doce preferido, e quando fecho os olhos imagino a figura dela, sugando a minha existência para algum paraíso secreto nos sete mares. Sei que jamais a encontrarei novamente. Sereias são promíscuas, se aninham nos braços de qualquer pescador e roubam seus corações para si. Ela ficou com o meu. E eu fiquei apenas com a lembrança de uma noite de verão.
Essa não é mais uma história de pescador. Aconteceu de verdade comigo. Mas eu sei que você não vai acreditar...
"A paixão pode ser avassaladora.
Muitos amores começam logo os gatos saem a noite,
e acabam-se com o canto do cotovia"

Desafio coletivo: um amor de verão.
Leia também as histórias de Pâmela, Maria Fernanda,  
Andrey, Fernanda, Matheus, Charlie e Alan Félix.

Quer participar também? Escreva e avisa pra gente.

4 de dezembro de 2009

Abiótico

No meu sonho mais lunático
Moro em território desértico
Onde tudo que nasce é de plástico
Onde todo sorriso é sarcástico
E todo amor é hipotético
Porque todo sentimento é bélico
Todo cristão é cético
Todo abraço é sintético
Todo mentiroso é mágico
Todo pagode é clássico
Todo mundo é estético
E o mundo todo é estático
O sexo é prático
O afeto é lógico
O coração é cáustico
Calcificado e analítico
Feito discurso de político
De partido democrático
Que promete ser fantástico
Mas deixa o cenário caótico
Pro povo se tornar mais católico
E ajudar o membro eclesiástico
Que vai ter um encontro orgástico
Com Jesus, o menino simpático
Que tem um pai neurótico
Por querer ser poético
Em território desértico
Onde ninguém é romântico
Onde o trabalho é robótico
O tráfico é público
O preconceito é pudico
O bom-senso séptico
E o anti-séptico é técnico
Consertando o nervo ótico
Pra perder o olhar crítico
E viver no automático.

2 de dezembro de 2009

Variações sobre um mesmo tema

Alice conheceu Renato e se apaixonou. Renato era alto e forte, apesar de meio burro. Mas sua falta de inteligência era compensada pelo romantismo. Ele mandava mensagens no meio da noite, flores no meio da tarde, e a acordava com muitos beijos e muito carinho. Era tudo perfeito. Mas alguma coisa aconteceu e Renato ficou distante. Ele não ligava mais, não mandava mais presentes, até os beijos perderam a intensidade. Era como se a paixão tivesse esfriado e o amor tivesse acabado como o leite em pó de uma lata. Alice então chorou. Chorou tanto, que seu travesseiro mais parecia uma esponja. Ela prometeu que não amaria novamente, até que

Alice conheceu Paulo e se apaixonou. Paulo também era alto, mas era muito magro. Sua falta de músculos, entretanto, era compensada pela alegria contagiante que ele expirava. Com Paulo, mesmo nos dias mais cinzas e mais tristes, havia sempre razão para sorrir. Ele fazia surpresas e a levava ao parque. Eles comiam algodão doce, pipoca, chocolate, maçã-do-amor, e voltavam para casa rindo da imensa vontade que tinham de vomitar um no outro. Era tudo perfeito. Mas alguma coisa aconteceu, e o sorriso de Paulo foi minguando. Ele já não fazia piadas, eles não já não faziam passeios divertidos, nem comiam mais doces juntos. Era como se a paixão tivesse morrido, e o amor se escondido atrás de uma nuvem escura que não chovia nunca. Alice então gritou. Gritou tanto que perdeu a voz, mas prometeu, em silêncio, que não se envolveria com mais ninguém, até que

Alice conheceu José e se apaixonou. José era um rapaz humilde, vindo do interior. Era baixo, meio entroncado, mas tinha força e inteligência. Eles estudavam juntos a tarde inteira, e era tão bom que parecia que tinham passado a tarde fazendo sexo. Era uma espécie de orgasmo mental. Ele tirava todas as dúvidas dela, e quando as notas eram boas, ambos eram recompensados com beijos, abraços e amassos de tirar o fôlego. Era tudo perfeito. Mas alguma coisa aconteceu e José mudou. Ele agora dizia que preferia estudar só, porque aprendia mais; também não tinha paciência para tirar dúvidas, e se não havia notas boas, não havia recompensa. Era como se a paixão tivesse fugido do coração atrofiado pelo crescimento do cérebro. Alice então sofreu. Sofreu dias a fio, mas prometeu que seria a última vez, até que

Alice conheceu Gabriel e se apaixonou. Gabriel era evangélico fanático, andava sempre com a bíblia embaixo do braço. Mas seu dinheiro compensava qualquer infortúnio causado pela promessa de virgindade. Ele a levava para os restaurantes mais caros da cidade, e enviava vestidos, sapatos e colares dos mais variados tipos, para que ela usasse em seus encontros, enquanto uma orquestra particular tocava para eles uma serenata. Era tudo perfeito. Mas alguma coisa aconteceu, e Gabriel ficou diferente. Ele passou a reclamar dos gastos, e fazia pregações diariamente, tentando encaixar Jesus em suas vidas. Era como se Jesus jogasse água na paixão toda vez que ela esquentava. Alice então rezou. Rezou muito para que Deus a poupasse de mais uma desilusão, e prometeu jogar São Pedro no lixo, até que

Alice conheceu Adamastor e se apaixonou. Adamastor, de feio, só tinha o nome. Ele parecia um Deus grego, um galã de novela recém saído da revista caras. Era o sonho de qualquer mulher, e era uma máquina na cama – e na mesa, no chão, na parede, no balcão, e etecetra e tal. Era tudo perfeito. Mas alguma coisa aconteceu: Adamastor conheceu Gabriel e se converteu. Agora não tinha mais sexo, nem abraço e nem mesmo beijo, porque ele estava em fase de purificação. Era como se a paixão tivesse sido enviada para queimar no fogo do inferno por algum pecado que cometeu. Alice então ficou irada. Ficou irada e abandonada, enchendo a cara de cachaça e vomitando pela casa, mas prometeu que assim o porre acabasse, entraria num convento. Até que

Alice conheceu Penélope, irmã de Renato, ex-namorada de Paulo, vizinha de José, da igreja de Gabriel e conhecida de Adamastor. Penélope era feia e chata: tinha cabelo estirado, dentes tortos, barriga de cerveja, hálito de cigarro e papo de gente bêbada. Mas Alice se apaixonou.

1 de dezembro de 2009

Cher Antoine (após o bip)


Encontrei um recado na geladeira
Com sua declaração de amor
A sua secretária me mandou seus beijos
O delivery entregou o escargot
Que eu comi sozinha
Na nossa mesa de seis lugares
Com nossos talheres de prata
Usando um dos novos colares
Que sua mãe escolheu.

Recebi sua mensagem na minha caixa postal
Não se preocupe com a passagem
Vou trocar por uma viagem
De presente de natal
Que vou passar sozinha
Com a nossa árvore montada
Vendo as luzes da escada
Piscarem sobre meu vestido decotado
Que você não vai ver.

Descontei o cheque que você enviou
De aniversário de casamento
O gerente mandou lembranças
Sinto não poder entregá-las pessoalmente
É que eu vou pegar o seu dinheiro
E fugir com o carteiro
Que me come toda quarta
Enquanto eu leio suas cartas
Que algum poeta escreveu.

[a]Margarida

Margarida era a moça mais bonita que meus olhos tiveram o prazer de ver. Pra falar a verdade, depois que eu a vi, aquele dia na padaria, todas as outras moças me pareciam feias e sem graça nenhuma. Margarida não, Margarida tinha graça de sobra. Acho que Deus deu a graça de umas vinte pessoas só a Margarida, e, por isso, por onde ela plantava sorrisos, ela colhia suspiros. Pelo menos comigo era assim. Eu lembro que até esqueci de respirar uma vez, quando a vi se inclinar sobre o balcão para pedir dez pães francês ao padeiro. Aquela voz de veludo, a forma como ela unia os lábios para falar “pão”, era a melhor música do mundo pra mim. Ah, como eu queria que ela falasse “pão” no meu ouvido! Eu queria ter falado com ela, mas quando ela passou por mim, abraçando aquele saco de papel, eu esqueci também como se falava, só pensava em como eu queria ser um saco de papel.

Depois daquele dia, eu virei o maior comprador de pão daquela padaria, que nem era perto da minha casa. Eu tinha entrado lá por acaso, pra me esconder do meu irmão mais velho, que queria bater em mim. Meu irmão mais velho sempre batia em mim para aliviar as tensões, e ele estava bem tenso naquela semana, porque – eu descobri ouvindo ele falar no telefone – ia ter um encontro com uma menina linda. Sorte a minha que ele não me alcançou, porque assim eu pude ver Margarida, o que se tornou um ritual para mim. Todo dia eu ia vê-la, não importava o que eu estivesse fazendo.

Mas um dia ela não apareceu na padaria. Eu fiquei esperando a tarde toda, porque era comum ela se atrasar, mas foi em vão. A padaria fechou sem que Margarida comprasse pão, e foi como uma noite sem estrelas pra mim. Cheguei em casa cabisbaixo, borocoxô que só eu, quando ouvi um grito vindo do andar de cima.

“Por favor, pare, por favor” Eu ouvi alguém gritando, e soube imediatamente de quem se tratava. Eu não podia estar enganado, porque eu sempre sonhava com Margarida sussurrando palavras começadas em “P” no meu ouvido. Era ela. Eu larguei a mochila no chão e subi as escadas correndo, correndo muito, como se minha vida dependesse daquilo. Mas era tarde demais. Quando eu entrei no quarto, Margarida estava encolhida no chão, com as roupas meio rasgadas, e chorando bem baixinho – quase não dava para ouvir. Eu olhei pra frente e vi meu irmão com mais dois amigos rindo alto e fechando o zíper da calça. Eu não sei o que me deu, mas me subiu uma fúria tão grande, mas tão grande, que eu pensei que fosse matar aqueles três ali mesmo, à abajurzadas (foi o primeiro objeto que eu vi). E, na verdade, eu realmente teria feito isso, se não fosse pequeno e fraco demais. Me odiarei o resto da vida, por não ter conseguido dar a eles a lição que eles mereciam. No final do acontecido, eu também estava encolhido no chão, com a impressão de que meus ovos tinham sido arrancados a dentadas, mas eu chorava alto e soluçava. Ainda assim, chorando e soluçando, eu ajudei Margarida a se levantar. Peguei uma roupa pra ela e liguei pra ambulância, porque o chão tava cheio de sangue.

No outro dia eu fiquei sabendo que ela não estava ferida, e que o sangue não era nada demais. Mas Margarida nunca mais voltou a ser a mesma. Nem eu. Nós nos tornamos amigos, e eu pedi desculpa milhares de vezes, por não ter chegado a tempo. Ela sempre dizia que não tinha sido minha culpa, mas eu sei que foi. Eu sabia que meu irmão ia sair com uma menina linda, e o conhecia bem o bastante para saber o que ele pretendia, mas eu fui omisso e não fiz nada. Eu simplesmente pensei “coitada dessa menina linda que vai sair com ele”, e não fiz nada. Nada, nada, nada.

Agora Margarida não planta mais sorrisos, nem vai mais a padaria. Margarida agora passa os dias em casa, assistindo televisão, fazendo costura. Ela engordou, entristeceu, nunca casou. Margarida perdeu a graça, caiu em desgraça. E ninguém nem lembra dela, de como ela costumava ser, apenas reclamam dela ser amarga e rabugenta, e de não deixar as crianças brincarem em seu quintal. Agora Margarida só tem a mim. Eu, que olho pra ela e vejo, no fundo dos olhos, aquela moça bonita que ganhou meu coração comprando pão.

Quem me segue (se perde comigo)