28 de novembro de 2009

Camisa Xadrez – A resposta.

Sabe aquelas cenas de filme, quando um casal passa a noite junto, a campainha toca e o homem desce para atender vestindo só uma cueca samba canção? (geralmente com alguma estampa bem boba) A mulher, curiosa, não consegue ficar esperando e vai atrás dele, mas como demoraria muito para vestir sua própria roupa, pega uma camisa dele e desce rapidamente. É claro que a verdadeira intenção dela é espantar qualquer “ex-mulher” que tente marcar território, porque ela sabe que roupas muito folgadas a deixam extremamente sexy e dão uma vontade danada de arrancar. Quando ela chega ao andar de baixo (se não tiver escadas não tem graça), ele já fechou a porta – era o carteiro, ou um vizinho pedindo açúcar, ou algum vendedor de biscoitos. Ela pergunta “quem era?” com um olhar de donzela em perigo, mas ele não responde, porque está muito ocupado, devorando-a com olhos de fome.   

Bom, talvez eu tenha inventado essa cena. Mas eu sempre lembro dela como se já tivesse visto, e sempre me dá um arrepio no pé do cabelo. Eu sei que não ficaria “extremamente sexy” com uma camisa folgada e amarrotada, mas ainda acho que seria uma situação bastante provocante, só pelo fato da camisa ser dele. Aquele cheiro de homem roçando na pele... Aquele cheiro, que mesmo depois de uma centena de banhos não sai, porque está ali sem estar ali, está na cabeça, tatuado no olfato, assim como o gosto de um beijo pode ficar na boca durante dias.

De qualquer forma, eu costumava vestir uma camisa do meu irmão e ficar fazendo caras e bocas na frente do espelho. Eu ensaiava aquele olhar de donzela em perigo e o soluço surpreso, de quando o dono da camisa me tomasse nos braços e me girasse, jogando-me no sofá. Aos mais ousados, isso vai parecer meio precoce – considerando que eu não tinha mais de 14 anos quando fazia isso –, mas essa não era uma cena de filme erótico. Era uma cena de comédia romântica com censura de 12 anos, onde o telefone sempre toca nos momentos mais quentes, ou a mãe de um dos personagens aparece. A magia não está na consumação do sexo, está no desejo mútuo que fica flutuando entre os protagonistas... Aquele desejo quase palpável de tão denso.

Depois que eu cresci eu parei de alimentar essas fantasias. Eu passei a vestir as camisas do meu irmão como camisola, e já não imaginava loucuras quando me olhava no espelho. Isso até eu vê-lo com aquela camisa xadrez. A camisa xadrez que eu conhecia sem jamais ter visto, a camisa xadrez que você desejava ver em uma linda mulher. Naquele momento eu quis ser a sua linda mulher. E agora fico eu, com dezenove anos, fazendo caras e bocas na frente do espelho, ensaiando um olhar de donzela em perigo, para que você me devore com olhos de fome, e me ame.

Resposta a um antigo post do meu amado (de quando ele não era meu): para ler, clique aqui.

27 de novembro de 2009

Pintura íntima II





























Bebi do seu vinho tinta
E pintei meu coração com seu corante
Entreguei-me a sua boca faminta
Fotografei nosso melhor instante

Fui tela branca pro seu pincel
Deslizando sobre mim como se eu fosse um papel
Apaguei-me do jeito antigo
Pra me desenhar de um jeito novo contigo

Joguei fora todo o solvente do seu ateliê
Rasguei as telas do seu estoque
Pra que ninguém me apague de você
Pra que você nunca me troque

Pendurei meu quadro em seu pescoço
Nossa foto em seu mural
Faça do meu corpo o seu esboço
Da minha pele, seu avental.

26 de novembro de 2009

Caindo

Aquele dia estava sendo realmente ruim. Um dia realmente ruim entre uma seqüência de dias realmente ruins. Na verdade, ele não lembrava a última vez que seu dia fora somente ruim.
Chovia um pouco. O trânsito estava parado na avenida, mas ele não se preocupava com isso, pois seu carro fora tomado na semana anterior para quitar algumas dívidas. Sua casa também fora hipotecada e estava por um fio. Ele tinha sido recusado em mais uma entrevista de emprego, enquanto seus antigos amigos estavam casados e bem sucedidos. Seu pai não telefonava há meses, parecia estar decepcionado demais com a ruína do único filho. Sua única namorada fugira com seu primo de segundo grau e o deixara só, mas – de certa forma – ele estava contente por não ter filhos - não queria mesmo propagar sua espécie fracassada.
Sufocado pelas paredes, ele decidiu que precisava de ar fresco. Saiu de casa, ignorando o rapaz de macacão azul que viera cortar a luz, e saiu pela calçada. Há muito tempo já perdera sua verdadeira luz. E há muito tempo perdera também qualquer estímulo para continuar vivendo.
Ele olhou em volta.
E seguiu em frente.
Olhou para os carros, as vitrines, os semáforos.
E seguiu em frente.
Olhou para as pessoas na rua, caminhando alegremente.
E seguiu em frente.
Olhou para casais, amigos, famílias.
E viu como estava tão só.
Foi aí que tudo veio à tona – toda sua dor. Lembrou-se do pai gritando, chamando-o de moleque inútil. Lembrou do seu primeiro F. Da primeira vez que se declarou a uma garota e levou um fora. Lembrou da primeira vez que seu currículo foi devolvido. E perdeu a conta, ao tentar lembrar-se de quantas vezes esse ciclo se repetiu. Ele percebeu que estava cansado de perder. Estava cansado de todo aquele sofrimento. Estava cansado do peso que era carregar a própria existência nas costas, sem nunca receber nada – de bom – em troca. Ele percebeu que estava cansado demais para continuar seguindo em frente.
Inconscientemente, chegou ao prédio da Faculdade (onde havia se formado). A cada andar que subia, tinha mais certeza de que queria acabar de uma vez com tudo.
Ele chegou na cobertura, caminhou até a borda.
E depois caiu...
 - Não é bonito?
Ele se virou.
- Como?
- O arco-íris. Não é bonito?
E olhou pra menina que apontava para frente.
- E as árvores? Nem parece que são tantas, lá de baixo. Você não acha esse lugar agradável? Gosto de sentir o vento... E de ver as árvores, é claro. Parece um mar verde, não parece? Verde é uma linda cor. A minha preferida.
- Verde?

- Ah, e veja só o céu... Não parece um mar de cabeça pra baixo? Tudo pode parecer mar. E o azul é tão tranqüilo... Azul é definitivamente a minha cor favorita.
- Azul? Mas...
- É verdade, eu disse que era verde. Mas quer saber? Gosto das duas.
Ela sorriu, e só então ele percebeu que não tinha caído. Tinha apenas olhado pra baixo e imaginado a queda. Esquecera, entretanto, de olhar também o arco-íris, e as árvores, e o céu. Esquecera de sentir o vento. E esquecera até mesmo de olhar em volta para se certificar que não tinha mais ninguém.
De repente ele resolveu olhar pro passado também. O que mais havia deixado de olhar?
E ele viu seu pai ensinando a jogar futebol. Viu a satisfação no rosto da sua mãe quando ele tirou aquele B sofrido no colegial. Viu seu professor aplaudi-lo pelas costas em sua formatura. Viu sua primeira paixão lhe sorrindo. Viu-se entre amigos, jogando conversa fora...
- Porque você não sai daí? Eu sei que a vista é melhor, mas é bem perigoso.
Ele segurou forte a mão que ela estendeu.
E depois seguiram em frente - juntos.

23 de novembro de 2009

Pintura íntima

Uma boca mais vermelha
Jogo de sombra no olhar
Um retoque na orelha
Efeito-sol pra bronzear

Apagou o sorriso sofrido
Deixou o nariz mais estreito
Preencheu o decote do vestido
Com um pouco mais de peito

Afinou a cintura
Escureceu o cabelo na raiz
A mais bela criatura
Pincelada com verniz

Mas depois que chuva a veio
Todo trabalho foi perdido
O bonito voltou a ser feio:
Era tinta pra tecido.

21 de novembro de 2009

MeLaço

Lábios
Laços
Laivos de mel

Me beija
Me laça
Lambuza o céu

Da minha boca.

19 de novembro de 2009

Post-it

[Eu estava deitada na cama, agonizando, testando o som de todos os palavrões que eu conheço, quando percebi que, pela primeira vez em muito tempo, tudo em mim dói - até os dentes -, menos o coração. Estou com 39 graus de febre, e ainda assim não me sinto queimar tanto como quando estou em seus braços].

16 de novembro de 2009

Enquanto você dormia

Eu gosto de observar a noite passar pela minha janela. Fico esperando que um carro rasgue o silêncio das avenidas vazias e me pergunto pra onde ele vai. Pra onde eu iria? (afirmação que de última hora se transforma em pergunta).
Eu iria para qualquer lugar onde os prédios não me impedissem de ver o céu, onde os muros de concreto não fossem barragem pro vento, onde dinheiro não comprasse simpatia, onde o ar não cheirasse a óleo diesel e pólvora queimada. Eu iria pra qualquer lugar que não fosse aqui. Deixaria um bilhete de despedida, levaria você na mochila, e nós viveríamos de comer frutos proibidos em algum pomar privado.
Mas, assim como a noite, o carro passa
[some em alguma esquina] 
e eu permaneço na janela,
esperando pela próxima carona.

13 de novembro de 2009

Depois de desembaçar o espelho








Agora tudo que se ouve são ecos,
e tudo que resta da lágrima
é uma marca no rosto,
que também será varrida
com o suor frio de novembro.

2 de novembro de 2009

Choveu

Quando o céu escureceu, encoberto por uma espessa camada de nuvens cinza, ele adorou. A chuva era a única coisa que ainda o fazia sentir realmente feliz. Havia algo sobre o cheiro de terra molhada. Havia algo na melodia suave das gotículas de água cortando o vento, beijando o chão. Tudo parecia tão limpo depois da chuva... As monções eram uma das poucas boas lembranças de sua infância. Sua mãe fazia seu prato preferido, seu pai voltava mais cedo pra casa, e o telhado sussurrava canções de ninar a noite inteira. A vida era boa quando chovia. Ele sempre tinha vontade de sair e dançar da chuva, mas era difícil faze-lo, devido ao excesso de proteção em casa. A primeira vez que ele havia dançado na chuva foi – quando estava longe de casa – jogando futebol com os amigos. Definitivamente, a chuva tinha dado a ele os momentos mais memoráveis de sua vida.

Estava chovendo agora. Ele estava sozinho em sua casa – um homem de setenta anos –, sua esposa morrera há vinte anos. Ele a amava muito, mas o destino o traíra – ao leva-la em um acidente cruel. Seu filho estava ocupado demais com sua própria vida para se preocupar muito com um homem mimado de idade, quiçá para pensar em visitá-lo. Ele tinha cansado da vida da cidade e havia se mudado para o campo logo após a aposentadoria. Tinha amigos lá – desde infância. Um deles tinha cansado (ao contrario dele) das colinas, por isso se ofereceu para lhe vender a casa. Era um bangalô calmo – com vista para um pomar de laranja. Ele tinha se apaixonado pela casa a primeira vista e tinha comprado. Além disso, chovia muito por ali...

Era seu aniversário – ele tinha virado um setenta. O cozinheiro (um homem cuja família inteira tinha vindo a servir às gerações da família do velho) tinha preparado sua comida preferida (o cozinheiro era bom, mas não tão bom quanto sua mãe), mas não o fez companhia no jantar. Após a – solitária – refeição, o velho saiu de casa. Foi sentar-se na varanda. O sol se põe cedo nas montanhas, por isso já estava escuro, e o céu começava a se derramar sobre a grama. Ele olhou para as nuvens com um sorriso nos lábios – como quem agradecia pelo presente – e começou a olhar para trás, para sua vida. Ele tinha sido bem sucedido – de fato, muito bem sucedido. Um estudante brilhante, um trabalhador assalariado – muito respeitado – para, em seguida, abrir seu próprio negócio e receber elogios em toda parte. Costumavam falar dele como “o homem com o toque de ouro” –, ele podia transformar quase todo negócio falido em um negócio lucrativo. Mas a morte de sua esposa mudou tudo isso. Ele perdeu o seu toque. Ele perdeu o entusiasmo pela vida, perdeu sua autoconfiança e começou a desistir do seu trabalho. Foi muito irônico: o homem que tinha tudo, perdeu tudo. Dizem que ele foi para o campo para fugir do que perdera – dos fantasmas dele.

As gotinhas continuavam a bater, sem tréguas, contra o gramado a sua frente. Ele olhou-as com um espanto repentino: aquilo era sobre viver em ciclos. A água descia, evaporava, subia, depois descia novamente. Ele fez uma pausa para pensar – “essas gotas nunca se cansam?”.

Uma tempestade estava chegando (ele podia sentir em seus ossos), e o cozinheiro o tinha alertado sobre ficar fora até tarde – mas o velho era persistente. Ele estava indo sentar-se na chuva. Na chuva, que fora uma segunda mãe pra ele.

O vento uivava. O velho tinha deslizado lentamente para o sono, e agora sonhava. Sonhava com sua esposa. Ela estava lá fora, na chuva, chamando-lhe com um sorriso no rosto. Ele queria chegar até ela, mas não conseguia. Ele estava tentando uma e outra vez – mas suas mãos estavam fora de alcance. Seu olhar lentamente mudou para um de desânimo. Não podia suportar perdê-la novamente. Ele fez outra tentativa – de alguma forma, desta vez, ele conseguiu romper a barreira que o puxava de volta e segurou a mão dela. Ela não falava nenhuma palavra – seu sorriso dizia tudo. Ele olhou para o céu e teve a impressão de que as nuvens estavam sorrindo para ele também. Tudo ao seu redor era feliz, e o júbilo invadiu suas feições – outrora desanimadas.

O cozinheiro encontrou seu corpo na manhã seguinte. Ele ainda estava na varanda. Seu corpo estava duro e frio. Seus olhos estavam fechados. Ele tinha partido durante o sono –, pensou o cozinheiro. Mas havia algo estranho em seu rosto. O que era? Sim, tinha que ser aquele sorriso. Era tão extraordinário...

Quem me segue (se perde comigo)