9 de dezembro de 2009

Noites de um verão qualquer

Era uma noite escura de verão, quase não havia vento, e o mar dormia tranqüilo, coberto pelo manto negro. Mas algo me tirava o sono. Abri a escotilha para espiar a estrela do norte: ela brilhava no céu de poucas nuvens, olhando por mim como uma protetora silenciosa.
Como não conseguisse dormir, eu subi ao convés. Fingi para mim mesmo que queria apenas ver minha estrela guia mais de perto, mas eu sabia que não era isso. Meu corpo todo se arrepiava apesar da ausência de vento, meu coração batia na ponta dos dedos e minha respiração ofegava sem qualquer motivo aparente. Eu pensei que fosse algum pressentimento ruim; uma tempestade silenciosa que se aproximava, um monstro marinho faminto por minha carne dura. Pensei até em fazer uma prece – nesses momentos, acreditar em Deus parece conveniente –, mas minha atenção foi absorvida pelo canto que me inundou de repente. Era um canto diferente de tudo que eu já tinha ouvido. Não era doce, nem agressivo, nem melodioso, não era sequer afinado, era apenas uma profusão de notas e subnotas, indo e vindo dentro da minha cabeça, como ondas do mar. Era isso. O canto não me adentrou os ouvidos hora nenhuma, ele estava dentro da minha cabeça o tempo todo, feito fosse minha consciência acalentando meu cérebro cansado.
Eu sei o que vocês estão pensando. Eu também pensei que estivesse ficando louco. Não precisava ser grande intelectual pra saber o que aquele canto significava e pra saber que era impossível. Mas impossível é uma palavra abstrata, sem valor algum. Tudo é possível, mas o egocentrismo do homem transformou em mentira tudo aquilo que ele não sabe explicar, nomeou de impossível todas as possibilidades mais fantásticas. Mas eu sei disso agora. Naquela noite eu nada sabia.
O barco foi seguindo um rumo próprio, movimentando-se rápido e só, contra o vento e contra a correnteza, contrariando todas as leis físicas que eu tinha como certas. Eu vi a estrela do norte ficando pra trás e soube imediatamente que deveria fazer algo para impedir. Mas o canto em minha cabeça me chamava, e eu ia como um rato farejando queijo, mesmo ciente de que estava indo direto para a ratoeira. Era uma consciência inconsciente, entende? Não adianta saber das coisas, se não há força para resistir e controlar a situação.
O mar a noite é escuro, nada se vê através das águas negras senão o reflexo da lua. Mas naquela noite sem lua, outro astro tomou seu lugar. Era uma estrela-do-mar, por assim dizer. Uma fada das águas, meio peixe, meio gente. A lenda que todo pescador sonha em encontrar, e estava ali, diante de mim, flutuando sobre as águas. Os cabelos dela eram de uma cor entre marrom e o dourado, a pele era branca feito folha de papel, e os olhos eram notívagos e hipnóticos. Eu a olhei por um minuto – que passou lento como se fosse um ano –, e quando o fiz o canto ficou mais alto e mais claro. Ela estava tentando me dizer algo, embora sua boca nem fizesse menção de se abrir.
“Feche os olhos” Eu a ouvi dizer dentro da minha cabeça. E assim eu fiz. Fechei os olhos pensando que ia ver tudo preto, mas minhas pálpebras pareciam que eram transparentes. Eu estava de olhos fechados, mas continuava a vê-la. Seus cabelos dançavam no vento, e os reflexos nas gotas de água que espirravam em volta dela lembravam confete de carnaval recortado em papel laminado. Eu estava maravilhado, quando percebi que ela se aproximava de mim, mais e mais. Senti que uma escola de samba passava no meu peito, quando os lábios dela tocaram os meus. Tinha o gosto do meu doce preferido, e os cabelos dela, que se enroscaram no meu corpo todo, tinham cheiro de praia. Ela me envolveu naqueles braços finos e eu me entreguei como uma virgem que se submete ao macho impassível.
Acordei estirado na areia, com o sol cegando meus olhos. Meu barco nunca foi encontrado, e ninguém sabe como eu cheguei á costa. Mas eu ainda sinto na boca o gosto do meu doce preferido, e quando fecho os olhos imagino a figura dela, sugando a minha existência para algum paraíso secreto nos sete mares. Sei que jamais a encontrarei novamente. Sereias são promíscuas, se aninham nos braços de qualquer pescador e roubam seus corações para si. Ela ficou com o meu. E eu fiquei apenas com a lembrança de uma noite de verão.
Essa não é mais uma história de pescador. Aconteceu de verdade comigo. Mas eu sei que você não vai acreditar...
"A paixão pode ser avassaladora.
Muitos amores começam logo os gatos saem a noite,
e acabam-se com o canto do cotovia"

Desafio coletivo: um amor de verão.
Leia também as histórias de Pâmela, Maria Fernanda,  
Andrey, Fernanda, Matheus, Charlie e Alan Félix.

Quer participar também? Escreva e avisa pra gente.

19 comentários:

Pâmela Marques disse...

U-a-u.

Eu sempre soube que sereias existiam, sabe? Assim como Papai Noel e coelhinho da páscoa, hahaha.
Quando eu era criança e assistia aquela Uma Sereia em minha vida, ficava imaginando como seria se elas realmente existissem.

Natália, você me surpreendeu com o texto. Perfeito moça :)
E o melhor de tudo é que o desafio foi lançado e nossas histórias apesar de diferirem terminam da mesma forma, longe dos braços do amado.

Adorei te ler boneca!

César Schuler disse...

Ah, boneca, 'cê arrasou nessa historinha :D

A cena erótica foi a melhor :B

(:

Mafê Probst disse...

Lembrou Yara, mãe d'água. Quem mais seria, se não ela? Quantos amores os pescadores perdem nas docas desse mundo, nas praias diversas de tons diferentes de areia?

Teu texto é bem u-a-u, como a Pâm disse. Abre um leque de possíveis interpretações. Eu viajei, como louca, entre frases e linhas, imaginando e interpretando coisas bem diferentes. E todas ótimas, como os amores de verão são.

Beijo amada

Andrey Brugger disse...

"Tudo é possível, mas o egocentrismo do homem transformou em mentira tudo aquilo que ele não sabe explicar, nomeou de impossível todas as possibilidades mais fantásticas".


GENIAL! Gostei muito, moça!

Charles Bravowood disse...

"Mas impossível é uma palavra abstrata, sem valor algum. Tudo é possível, mas o egocentrismo do homem transformou em mentira tudo aquilo que ele não sabe explicar, nomeou de impossível todas as possibilidades mais fantásticas."

__

A sereia roubou o coração dele, e vocês o meu, devolvam garotas, XD.
Ineplicavelmente inebriante, um lampejo de sonho perpassou minha existência agora!

Charlie B.

Ps. Postei sobre New Moon, o/.

Natalie disse...

Amei seu texto, a forma como você escreve, amei essa fantasia-realista, do tipo: acontece, mas você não acredita...
Adorei os 'confetes recortados em papel laminado', 'o meu doce preferido', adorei uma escola de samba em meu peito, gostei muito das suas metáforas.
Enfim, achei muito bom mesmo.
Parabéns.
"Tudo é possível, mas o egocentrismo do homem transformou em mentira tudo aquilo que ele não sabe explicar, nomeou de impossível todas as possibilidades mais fantásticas. Mas eu sei disso agora. Naquela noite eu nada sabia"
Ah, eu gostei demais. é só isso.
Beijos ;*

Érica Ferro disse...

Natália do céu, você TEM QUE PUBLICAR um livro e autografrar um pra mim. *-*

Velho, tudo que tu escreves fica MUIIO massa.
Até teus comentários são sempre incríveis.
Na moral, sem querer ser tiete, mas tens uma fã aqui. \õ
Nessa blogosfera encontrei vários poetas e poetisas. Tu te encaixas facilmente nessa categoria.

"Tudo é possível, mas o egocentrismo do homem transformou em mentira tudo aquilo que ele não sabe explicar, nomeou de impossível todas as possibilidades mais fantásticas."

Velho, que frase é essa? De uma sabedoria incrível.

Ah... e o poeta?
Bem, eu adoraria ser a poesia dele, mas temo que ele não aceite, não queira isso. Também sei que é preciso arriscar, e eu tô criando forças pra isso, pra arriscar e pagar pra ver.

Um abraço forte.

Tiago Fagner disse...

Gostei de como você nos mostrou nocas caracteriscas para uma sereia... Como o cantar sem abrir a boca. E ela ser vísivel mesmo de olhos fechados.Mais uma vez o triplice fio, realidade, estória e literatura num belo texto.

"Aconteceu de verdade comigo. Mas eu sei que você não vai acreditar..."

EU ACREDITO!

Tiago Fagner disse...

PS: O que é cotovia?

gabi disse...

uaaauu, cara!
adoro essa coletividade blogueira :D

msn:
gabiz--@hotmail.com
gtalk: nem sei que é isso (chatdo google? oO) :x

disse...

Aceitei o desafio.

Tá lá:
http://certoquerer.blogspot.com/2009/12/noites-de-um-verao-qualquer.html

Beijos

Matheus Sobral. disse...

Esse texto foi diferente dos outros, mas ficou muito bom também. Um amor de verão surreal, mas quem sou eu pra dizer que não acredito? XD

CL disse...

Quando dizem que os mares escondem mais mistérios do que podemos imaginar, é a mas pura verdade. E que mistério mais delicioso esse pescador desvendou ein!

The Owl disse...

Gostei da forma como a tensão é construída no início e - claro - da frase que todo mundo tá elogiando aí em cima.

O interessante é que, antes de ler seu texto, eu estava escutando um podcast antigo sobre Piratas do Caribe, então já entrei na história com um clima todo particular.

Carol Martins disse...

gostei do texto, mesmo! ah, não to apaixonada, mas acho que escrevo como se estivesse né? ;x auhduadhua

Unknown disse...

A única sereia que acredito é Iemanjá, todo dia 2 de fevereiro vou saudar.

Linda estória de pescador, Natália Corrêa, digo convicto que você é ótima na prosa, ainda terei essa qualidade que você tem.

Beijo!

Glaucovsky disse...

Posso me fuder fazendo essa pergunta, mas você só tem 17 anos mesmo? Esse texto é bem acima da média! Se for, você é talentosa além da conta. Gostei demais.

Erica Vittorazzi disse...

Natália, o Glauco está certíssimo. Você é muito talentosa. Sempre são demais os seus textos...

Unknown disse...

Escrevi um conto para a postagem coletiva "noite de um verão qualquer".

Conferi no meu blog.

Cadês você que ainda não postou.


Abraço!

Quem me segue (se perde comigo)