Era uma sala pequena, mas a tintura branquíssima emprestava ao âmbito uma amplidão e uma placidez que não condiziam ao local. Quanto desespero já não se passara entre as paredes daquele hospital? Perguntava-se uma jovenzinha pálida de cabelos extremamente vermelhos, cujas pequeninas mãos repousavam sobre um livro de capa grossa e chamativa. Era um romance épico. Anastácia sorria para si mesma, imaginando em como os sentimentos eram intensos naquele tempo — ou pelo menos em como os artistas acreditavam nisso. Acreditar é o primeiro passo para conquistar, dizia ela ao seu irmão mais velho, quando ele demonstrava laivos de desapontamento para com a vida. Mas não era verdade? As pessoas morriam por amor, porque acreditavam em sua força. Agora, entretanto, morriam apenas por desastres, acidentes, homicídios ou mesmo suicídios. Tão triste, pensava ela. O sorriso em seu gosto parecia que ia se esvaindo aos poucos, enquanto os olhos dela se embebiam da agonia daquelas pessoas que, estando numa mesma sala, sequer pensavam em compartilhar sua dor uns com os outros. Todos fechados em seus casulos, ocupados demais com suas próprias amarguras.
Anastácia relanceou os olhos, e suas íris esmeralda recaíram novamente sobre o livro. Abriu-o. Folheou-o. Naquelas palavras encontrava o alento que a realidade não oferecia. E que seus pés, impossibilitados de se moverem, não podiam partir em busca.
Somente quando o som de ranger da porta se propagou pelas paredes da sala, Anastácia retornou a realidade. Esboçava um sorriso sereno nos lábios, um ar de quem desperta de um sonho bom e faz uma prece silenciosa para que seja verdade.
Estivera em Roma, na Era em que homens enfrentavam leões para provarem seu amor. E Havia um rapaz: Benjamim Lourenço, o nome dele. Integrava o exercito de Marco Aurélio, um dos melhores cavaleiros, e acabara de regressar de uma guerra sangrenta contra os Germanos.
Agora ele estava indo de encontro à sua secreta e amada Juliett, filha do imperador. Uma paixão proibida, certamente. Mas quando há amor verdadeiro, uma faísca transforma-se em fogaréu intenso num conciso piscar de olhos; e quando menos se espera, já não se ouve mais a voz da razão ou do bom senso, apenas as batidas violentas de um coração aflito de tanta saudade.
Ele cruzou, em passos céleres, a grande multidão que festejava a volta vitoriosa dos cavaleiros de Roma. Havia uma imensa profusão de danças e bebidas; as mulheres felizes por seus maridos terem voltado em paz da guerra. Das que os haviam perdido, entretanto, pouco se lembrava. Mesmo naquele tempo, a alegria da maioria já ofuscava a tristeza dos poucos; dos parcos e opacos eremitas.
Quando Benjamim transpôs os portões, estava a sorrir. Era um homem jovem e bonito, de tez trigueira, olhos negros como a noite que os acobertava quando fugiam para verem, juntos, a lua se posicionar no ponto mais alto do céu. Grande céu. Sendo ele (o céu) tão extenso, como as estrelas não se perdem? Indagava Juliett a si mesma, debruçada na janela, a esperar seu amado e amante, seu guerreiro e herói, ou, somente, seu querido Ben.
Ela olhou-o se aproximar pelos jardins. E como eram lindos os jardins! Flores de todas as qualidades e cores; rosas, heliotrópios, lírios grandes e pequenos. Uma imensidão verdejante circundando o palácio colossal, erguido em mármore, coberto de hera.
Benjamim se aproximou mais dos muros do palácio. Era o momento em que Juliett — enrolando os cabelos nas pontas dos dedos — sorri-lo-ia com suas feições de anjo, e confessaria ter orado todas as noites por sua volta. Anastácia sabia porque já lera aquele mesmo livro outras nove vezes (não possuía dinheiro para novos); em cada uma delas, imaginava novos detalhes no cenário, nas expressões, nas palavras... Era como se pudesse mergulhar mais profundamente nas páginas, se as folheasse o bastante. Mas, naquele momento, parara de folhear. O ranger da porta parecia ter se introduzido no curso da história, sobrepujando todos os outros sons.
Anastácia fechou o livro, acariciando delicadamente a capa, e meneou a cabeça na direção da porta.
Foi imediata, sua reação. Seus olhinhos verdes se estreitaram um pouco, ela pestanejou descrente. O insubstancial cheiro de flores que ainda respirava fora substituído por um cheiro amargo e agressivo de óleo dísel. Mas em despeito à drástica mudança de aromas, ela sorveu longos haustos de ar: era bom. Era como se sentisse o cheiro peculiar dos cavalos de Benjamim, aquela mistura entre suor e pólvora que era estranhamente entopercente, como um vício que não se quer largar. A surpresa maior veio em seguida, entretanto. Um homem fora o causador do ranger, ele adentrou a sala de espera apoiando-se das paredes. A camisa dele estava manchada de sangue na altura do ombro, e as mãos pareciam trêmulas e sem força. Quando Anastácia fitou-lhe o rosto pálido (de quem perdera muito sangue), sobressaltou-se. Aqueles olhos, tão escuros e profundos que mais pareciam buracos negros, eram embaraçosamente familiares, a pele morena, naturalmente bronzeada e castigada pelo sol; tudo e cada mínimo detalhe era igualmente belo e hipnotizante, como Benjamim na história.
Anastácia, por curiosidade ou preocupação, deteve-se naquela figura por alguns instantes. Criara um homem no recôndito dos seus pensamentos e agora ele estava ali, à sua frente, cambaleando para junto de si.
Quis ajudá-lo, mas não havia nada que pudesse fazer. Amaldiçoou seus pés inválidos por não poderem levá-la a ele, por privarem-na na honra de apoiá-lo em um dos seus ombros.
— Benjamim! — clamou angustiada, ao vê-lo desabar ao chão, quase tocando seus (amaldiçoados) pés. — Ajudem-no, por favor! — implorou a ninguém em especial.
Mas todos ainda pareciam demasiadamente alheados à realidade para se moverem. Apenas um senhor, já meio encurvado pela idade, ousou se manifestar. Ajoelhou-se diante do homem caído e ergueu-o o máximo que pôde. Um rapaz bem moço também se levantou depois, e, um minuto mais tarde, já havia cinco novas pessoas a ajudar. Postaram o misterioso numa cadeira ao lado de Anastácia. Ela mostrou-lhe os dentes brancos, tocando-lhe suavemente a tez grosseira do rosto dele.
— Do que você me chamou? — a voz dele parecia gorgolejar, quando falava. E ele soltou um suspiro, como se estivesse muito, muito cansando; como se somente falar custasse-lhe um esforço enorme.
— Benjamim.
— É esse o nome que você dá a estranhos? — com os olhos fechados, ele retorceu os lábios num sorriso cheio de dor.
— Não, esse nome é especialmente seu, estranho. Mas agora fique quieto, precisa poupar suas forças. Você levou um tiro? — ao perceber que sua pergunta exigiria dele uma resposta, acrescentou: — ora que tola eu sou, não responda, apenas descanse.
“Benjamim” deve ter achado graça na forma como Anastácia se repreendia, mas não pode sorrir. Engasgou e começou a tossir sangue. Parecia que seus ossos chacoalhavam dentro dele, cada vez que seus pulmões expeliam rajadas de hemorragia interna.
— Por favor, continue falando comigo. — ele implorou com suas últimas forças, e seus olhos se fecharam novamente. Estava mesmo muito, muito cansado.
— Sim, claro. — e se pôs a contá-lo sobre Roma, sobre os cavaleiros destemidos e os leões. Contou-o sobre Benjamim e Juliett, sobre como o amor deles resistira até mesmo a repressão imperial e sobre como os finais felizes deveriam ser reais.
Se ele ouvia, não demonstrava qualquer traço de atenção. Mas ela continuou a falar.
Anastácia relanceou os olhos, e suas íris esmeralda recaíram novamente sobre o livro. Abriu-o. Folheou-o. Naquelas palavras encontrava o alento que a realidade não oferecia. E que seus pés, impossibilitados de se moverem, não podiam partir em busca.
Somente quando o som de ranger da porta se propagou pelas paredes da sala, Anastácia retornou a realidade. Esboçava um sorriso sereno nos lábios, um ar de quem desperta de um sonho bom e faz uma prece silenciosa para que seja verdade.
Estivera em Roma, na Era em que homens enfrentavam leões para provarem seu amor. E Havia um rapaz: Benjamim Lourenço, o nome dele. Integrava o exercito de Marco Aurélio, um dos melhores cavaleiros, e acabara de regressar de uma guerra sangrenta contra os Germanos.
Agora ele estava indo de encontro à sua secreta e amada Juliett, filha do imperador. Uma paixão proibida, certamente. Mas quando há amor verdadeiro, uma faísca transforma-se em fogaréu intenso num conciso piscar de olhos; e quando menos se espera, já não se ouve mais a voz da razão ou do bom senso, apenas as batidas violentas de um coração aflito de tanta saudade.
Ele cruzou, em passos céleres, a grande multidão que festejava a volta vitoriosa dos cavaleiros de Roma. Havia uma imensa profusão de danças e bebidas; as mulheres felizes por seus maridos terem voltado em paz da guerra. Das que os haviam perdido, entretanto, pouco se lembrava. Mesmo naquele tempo, a alegria da maioria já ofuscava a tristeza dos poucos; dos parcos e opacos eremitas.
Quando Benjamim transpôs os portões, estava a sorrir. Era um homem jovem e bonito, de tez trigueira, olhos negros como a noite que os acobertava quando fugiam para verem, juntos, a lua se posicionar no ponto mais alto do céu. Grande céu. Sendo ele (o céu) tão extenso, como as estrelas não se perdem? Indagava Juliett a si mesma, debruçada na janela, a esperar seu amado e amante, seu guerreiro e herói, ou, somente, seu querido Ben.
Ela olhou-o se aproximar pelos jardins. E como eram lindos os jardins! Flores de todas as qualidades e cores; rosas, heliotrópios, lírios grandes e pequenos. Uma imensidão verdejante circundando o palácio colossal, erguido em mármore, coberto de hera.
Benjamim se aproximou mais dos muros do palácio. Era o momento em que Juliett — enrolando os cabelos nas pontas dos dedos — sorri-lo-ia com suas feições de anjo, e confessaria ter orado todas as noites por sua volta. Anastácia sabia porque já lera aquele mesmo livro outras nove vezes (não possuía dinheiro para novos); em cada uma delas, imaginava novos detalhes no cenário, nas expressões, nas palavras... Era como se pudesse mergulhar mais profundamente nas páginas, se as folheasse o bastante. Mas, naquele momento, parara de folhear. O ranger da porta parecia ter se introduzido no curso da história, sobrepujando todos os outros sons.
Anastácia fechou o livro, acariciando delicadamente a capa, e meneou a cabeça na direção da porta.
Foi imediata, sua reação. Seus olhinhos verdes se estreitaram um pouco, ela pestanejou descrente. O insubstancial cheiro de flores que ainda respirava fora substituído por um cheiro amargo e agressivo de óleo dísel. Mas em despeito à drástica mudança de aromas, ela sorveu longos haustos de ar: era bom. Era como se sentisse o cheiro peculiar dos cavalos de Benjamim, aquela mistura entre suor e pólvora que era estranhamente entopercente, como um vício que não se quer largar. A surpresa maior veio em seguida, entretanto. Um homem fora o causador do ranger, ele adentrou a sala de espera apoiando-se das paredes. A camisa dele estava manchada de sangue na altura do ombro, e as mãos pareciam trêmulas e sem força. Quando Anastácia fitou-lhe o rosto pálido (de quem perdera muito sangue), sobressaltou-se. Aqueles olhos, tão escuros e profundos que mais pareciam buracos negros, eram embaraçosamente familiares, a pele morena, naturalmente bronzeada e castigada pelo sol; tudo e cada mínimo detalhe era igualmente belo e hipnotizante, como Benjamim na história.
Anastácia, por curiosidade ou preocupação, deteve-se naquela figura por alguns instantes. Criara um homem no recôndito dos seus pensamentos e agora ele estava ali, à sua frente, cambaleando para junto de si.
Quis ajudá-lo, mas não havia nada que pudesse fazer. Amaldiçoou seus pés inválidos por não poderem levá-la a ele, por privarem-na na honra de apoiá-lo em um dos seus ombros.
— Benjamim! — clamou angustiada, ao vê-lo desabar ao chão, quase tocando seus (amaldiçoados) pés. — Ajudem-no, por favor! — implorou a ninguém em especial.
Mas todos ainda pareciam demasiadamente alheados à realidade para se moverem. Apenas um senhor, já meio encurvado pela idade, ousou se manifestar. Ajoelhou-se diante do homem caído e ergueu-o o máximo que pôde. Um rapaz bem moço também se levantou depois, e, um minuto mais tarde, já havia cinco novas pessoas a ajudar. Postaram o misterioso numa cadeira ao lado de Anastácia. Ela mostrou-lhe os dentes brancos, tocando-lhe suavemente a tez grosseira do rosto dele.
— Do que você me chamou? — a voz dele parecia gorgolejar, quando falava. E ele soltou um suspiro, como se estivesse muito, muito cansando; como se somente falar custasse-lhe um esforço enorme.
— Benjamim.
— É esse o nome que você dá a estranhos? — com os olhos fechados, ele retorceu os lábios num sorriso cheio de dor.
— Não, esse nome é especialmente seu, estranho. Mas agora fique quieto, precisa poupar suas forças. Você levou um tiro? — ao perceber que sua pergunta exigiria dele uma resposta, acrescentou: — ora que tola eu sou, não responda, apenas descanse.
“Benjamim” deve ter achado graça na forma como Anastácia se repreendia, mas não pode sorrir. Engasgou e começou a tossir sangue. Parecia que seus ossos chacoalhavam dentro dele, cada vez que seus pulmões expeliam rajadas de hemorragia interna.
— Por favor, continue falando comigo. — ele implorou com suas últimas forças, e seus olhos se fecharam novamente. Estava mesmo muito, muito cansado.
— Sim, claro. — e se pôs a contá-lo sobre Roma, sobre os cavaleiros destemidos e os leões. Contou-o sobre Benjamim e Juliett, sobre como o amor deles resistira até mesmo a repressão imperial e sobre como os finais felizes deveriam ser reais.
Se ele ouvia, não demonstrava qualquer traço de atenção. Mas ela continuou a falar.
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