1 de fevereiro de 2010

Coração sem espinhos

Foi emocionante quando o carteiro me entregou o pacote. Era uma caixa simples, coberta por papel madeira, carimbada com um aviso de “frágil”. Abri-a com as mãos tremendo, como se soubesse (ou sentisse) do que se tratava, e encontrei uma segunda caixa. Essa já não era tão simples: vermelha, envolvida com cetim e fitas douradas, parecia um presente de natal. Desatei os laços bem devagar - talvez pra prolongar o momento -, retirei a tampa e, dessa vez, encontrei um relicário antigo, já meio oxidado, mas muito bonito mesmo assim. Ele estava trancado com um cadeado de diário, daqueles que qualquer chave abre, e eu entendi o recado imediatamente: tu sempre me disseste que é muito fácil amar alguém de vez em quando, mas que amar alguém o tempo todo, com mau humor matinal, remela nos olhos, mau hálito, TPM, ronco, estresse e rotina repetitiva, é muito complicado. E eu, aparentemente, havia passado no teste, pois nosso amor estava resistindo aos desafios diários da convivência sem grandes dificuldades.
Logo que abri o relicário com a chave do meu diário, uma lágrima desapontou em meus olhos. Lá estava o teu coração, embrulhado em um plástico-bolha, pulsando, pulsando, pulsando. Tomei-o nas mãos – era macio e escorregadio - e aproximei-o do meu próprio coração para que eles pulsassem juntos. Uma felicidade sem tamanho me invadiu – e como poderia ser diferente? Aquela era a maior prova, não só de amor, que alguém já tinha me feito. Era uma prova de confiança e entrega absoluta. Naquele momento, certo do teu amor, eu tive certeza de que tu me farias feliz. Por isso, na mesma noite, pedi tua mão em casamento. Tu aceitaste sem sequer pestanejar, abraçou-me forte e disse baixinho em meu ouvido “cuida bem do meu coração”. Eu, quase ofendido com aquela recomendação, respondi que “quando a gente gosta, é claro que a gente cuida”.
E por muito tempo nós vivemos juntos e bem. No início, eu protegia teu coração como se ele fosse de vidro; andava com ele sempre pertinho do meu, pra garantir que continuasse a bater por mim. Quando, um dia, eu esqueci de levá-lo ao trabalho comigo, fiquei nervoso a tarde inteira, suando frio, com medo que ele parasse por causa da solidão; mas descobri, ao chegar em casa, que mesmo distante ele continuava a bater – e que o compasso das batidas chamavam meu nome. Passei então a deixá-lo em casa, por ser mais seguro e mais cômodo (pra mim e pra ele); mas sempre antes de dormir ao teu lado, eu checava se teu coração estava bem. Entretanto, como ele só batesse mais forte a cada dia, passei a checá-lo de dois em dois dias, depois de semana em semana, de quinze em quinze dias...
Nós já estávamos casados há alguns anos, quando eu te notei triste, desanimada, quieta demais. Perguntei se tinha acontecido alguma coisa, e foi quando tu me disseste que teu coração estava sofrendo. Na hora eu fiquei em choque: “como assim sofrendo?”. Tentei lembrar da ultima vez que eu o tinha checado, e quando não consegui, a culpa me tomou. “Estou me sentindo muito sozinho” diria teu coração, se pudesse. Corri até o quarto, abri o relicário - agora verde de tão oxidado - e peguei-o delicadamente. Continuava corado, saudável e batendo forte como se nada tivesse acontecido - como poderia estar sofrendo? Fiquei irritado. Achei que tu estavas cobrando muito de mim, enquanto eu passava os dias trabalhando arduamente para sustentar nossa família.
Ainda com teu coração em mãos, levei-o até você. “Olha aqui, ele está perfeito!” Eu disse em tom de revolta. Estava tão cego de raiva, que só percebi que havia apertado ele com força demais, quando tu colocaste a mão no peito e teus olhos se encheram de dor. Olhei pra minha mão, e vi que o teu amor escorria entre meus dedos. Escorria com o sangue que espirrava em minha blusa, e escorria vermelho, como o cetim da caixa.
Teu coração ficou bem, depois de costurado, mas teu amor escorreu tanto que acabou. Dias depois tu foste embora, levando consigo nossos filhos e até o plástico-bolha que eu gostava de usar como terapia. E fui eu quem ficou sozinho, lembrando de como eu tive certeza de que tu me farias feliz – e, Deus, como tu me fizeste feliz! -, sem jamais me preocupar retribuir a dedicação. Descobri que ser amado é, quem sabe, mais difícil que amar. Pois quando o amor oferecido é demais, a gente se acomoda, a gente se descuida, e a gente se esquece que coração sem espinhos, como me era o teu, é mais fácil de esmagar.

36 comentários:

Marcel Hartmann disse...

Sabia que o teu blog é um dos meus preferidos? Tu tem talento, e não se esquece disso nunca.

Tiago Fagner disse...

Nossa Natália deixa vez você deixou meu coração apertado. Eu tô me vendo nos dois papéis.

"Pois quando o amor oferecido é demais, a gente se acomoda, a gente se descuida, e a gente se esquece que coração sem espinhos, como me era o teu, é mais fácil de esmagar."
Essa frase é perfeita. Você tem que me emprestar ela. hahahahha

Ah vai pra o show de Lenine no Marco Zero?

Márcio Vandré disse...

Eu cansei de proteger os outros corações.
Hoje priorizo o meu.
:)
Um beijo, Natália!

Bárbara disse...

Uma grande questão. Talvez nunca encontremos a resposta... se é que isso significa a solução! rs

Adoro esse blog. Parabéns, de verdade.

BJS

The Owl disse...

É assim mesmo...Quando damos algo por certo, acabamos nos descuidando. Por isso é que uns baques e uns chacoalhões de vez em quando são saudáveis, pra que a gente possa rever as prioridades.

Érica Ferro disse...

Uma verdade?
Essa:

"Pois quando o amor oferecido é demais, a gente se acomoda, a gente se descuida, e a gente se esquece que coração sem espinhos, como me era o teu, é mais fácil de esmagar."

Beijo, NatáliaLinda.

Thai Nascimento disse...

Natália, parabéns pelo texto. Já dizem mesmo que o pior veneno pra o casamento ou qualquer relacionamento é a acomodação. O cuidado e o zelo do início devem permanecer ou, como aconteceu nesse caso, o amor acaba escorrendo enquanto nem se percebe.

Anônimo disse...

foi um dos textos mais lindos que eu li :)

é sempre uma delícia vir por aqui...

beijos :*

Luana Gabriela disse...

Que texto lindo!
E o final então? Perfeito.
Hoje tenho um coração que não tem espinhos, mas tb não entrego pra ninguém.

Os espinhos fariam com que ele se machucasse sozinho.. e ele ta bem

Bjos

Luciana Brito disse...

E teu texto me fez pensar que amor demais faz mal. Não sei se a gente acaba descuidando, talvez o termo nem seja esse, só sei que a gente pode acabar sufocando ou sendo sufocado por tanto amor.

Tu escreveu muito bem, Nat.
Bonito apesar de tudo e passou muito bem a mensagem.

Beijo, moça!

Erica Vittorazzi disse...

Natália, que texto mais lindo e mais real.
Quase plantei um espinho no meu, só para ver se ele não oxidava...

Anônimo disse...

Você devia ser imortalizada na Academia Brasileira de Blogs (uhuahauahua), é sério mesmo, seus textos são absurdamente bons!

Abraços!

Thai Nascimento disse...

Respondendo ao teu comentário: hum, bem que o cara podia ser bonitinho mesmo, né? Infelizmente não tive essa sorte e meu coração continua no lugar dele :(

Mariana Andrade. disse...

teu talento me deixa até um pouco intimidada às vezes. e eu fico pensando porque pessoas que nao escrevem nada com nada criam blogs kkk se todos fossem bons como o teu, eu passaria um dia inteiro lendo-os.
enfim.. talvez eu nunca tenha concordado tanto com algo que li. como consegues traduzir exatamente as coisas que a gente sente em palavras? É um parágrafo mais magnifico que o outro. transbordando alma. garota, és o que escreve em todos os átomos da tua ALMA (como acredita Demócrito, até a alma possui átomos). Mas, sabe.. enchi tanto o meu coração de espinhos pra tentar afastar certo alguém, e ele insiste em ficar. não sei o que é isso, realmente não sei.

César Schuler disse...

Desculpa.

Eu quero cuidar bem do seu coração.

Kuriozza disse...

Enquanto isso, vivo louca protegendo o coraçãozinho que ganhei de presente. Obrigada pelo alerta. Não vou deixa-lo sozinho jamais. =)

ps: Os seus textos são lindos. Todos eles.

Bj!

Iasminne Fortes disse...

Adoro teus contos cheios de verdade.

"Teu coração ficou bem, depois de costurado, mas teu amor escorreu tanto que acabou(...) Descobri que ser amado é, quem sabe, mais difícil que amar."

Não sei o que fazer quando tudo escorre. É tão difícil...
=*

Pâmela Marques disse...

Acabei de dizer um nossa tão lamentoso que minha mãe perguntou o que era. É o amor, Natália. É que eu te li com o coração na mão e pensando em cada cena, sabe. E quando vi que o amor acabara, percebi que é sempre assim que acontece. Me deu raiva ver a verdade no teu texto que é tão lindo.

Por que a tristeza e a dor são tão lindas?

Saudade de te ler, flor.

Unknown disse...

Belo texto!
A gnt se acostuma com as coisas e quando sabemos que já há conquista, não cuidamos das coisas.

Beijos

Andy disse...

Adorei! uma bela lição, sem falar da citação do Caetano *-*

espero que ainda lembre de mim rs

M. disse...

Adorei o texto. Muito, muito, muito mesmo. Estou seguindo seu blog. Um beijo ;*

Tatiane Trajano disse...

E por agora, só quero cuidar um pouco do meu coração.

ei...


PARABÉNS PELA APROVAÇÃO NO VESTIBULAR!!!
\O/

Ferdi disse...

Gente do céu, que lindo, estou chorando e.. ai, estou mui sensível esses dias, mas, você é tão boa! Sério..

Unknown disse...

Guria, mas tu te superas a cada dia! Teu blog está no meu TopFive com certeza!

gabi disse...

ultimamente os corações andam fluindo por nós, mais que o normal.

adorando tua escrita. acho que já disse, né?
te adicionei no orkut.
beijo.

Anônimo disse...

"é muito fácil amar alguém de vez em quando, mas que amar alguém o tempo todo..."

Amar alguém o tempo todo, ah sim... Isso é um DESAFIO!!!

Felipe disse...

É impressionante, não encontro um só texto no seu blog que seja bom. Todos eles são melhores que isso =p
Adoro vir aqui.

abraços

Lucas disse...

Muito bom.

Thayanne disse...

Nossa, que blog lindo! Acabei de descobrir e estou encantada!

Mas refletindo sobre corações... Às vezes cuido demais dos corações alheios e esqueço do meu próprio coração, que sempre vem em meu segundo plano e no segundo plano, quem sabe também, dos outros...

Sério, você é muito talentosa! Parabéns! Também escrevo, mas não tenho coragem de postar em um blog, sei lá... Mas você não pensa em escrever livros? Sinceramente, eu compraria! E tenho certeza que muita gente também iria querer ter uma cópia! Você tem talento!!! :B

Vou divulgar seu blog! :P

Anônimo disse...

Não vou falar nada. Quase chorei.


Posso pegar emprestado com os devidos créditos?

Valeu.

(porra, você é foda)


beijo :*

Luciana disse...

vc escreveu isso pensando em mim, FATO! e eu não vou acreditar se vc falar que não foi!

Maurilo disse...

caceta, nati tás escrevendo muuuuito.

:*

Fernanda disse...

pasma, só o q posso dizer.
amei o conto, e a delicadeza da sua escrita. caramba, vc me impressionou o_o

parabéns!

Glaucovsky disse...

Para tudo menina! Que texto foi esse? Tem certeza que vc é desse planeta?
muito bom.

Maris Morgenstern disse...

Nati, vc me fez chorar...

Thamires Figueiredo disse...

' você é muito boa, não pude me conter e até roubei um trechinho e botei lá no meu blog, parabéns!

Quem me segue (se perde comigo)