Era uma noite escura de verão, quase não havia vento, e o mar dormia tranqüilo, coberto pelo manto negro. Mas algo me tirava o sono. Abri a escotilha para espiar a estrela do norte: ela brilhava no céu de poucas nuvens, olhando por mim como uma protetora silenciosa.
Como não conseguisse dormir, eu subi ao convés. Fingi para mim mesmo que queria apenas ver minha estrela guia mais de perto, mas eu sabia que não era isso. Meu corpo todo se arrepiava apesar da ausência de vento, meu coração batia na ponta dos dedos e minha respiração ofegava sem qualquer motivo aparente. Eu pensei que fosse algum pressentimento ruim; uma tempestade silenciosa que se aproximava, um monstro marinho faminto por minha carne dura. Pensei até em fazer uma prece – nesses momentos, acreditar em Deus parece conveniente –, mas minha atenção foi absorvida pelo canto que me inundou de repente. Era um canto diferente de tudo que eu já tinha ouvido. Não era doce, nem agressivo, nem melodioso, não era sequer afinado, era apenas uma profusão de notas e subnotas, indo e vindo dentro da minha cabeça, como ondas do mar. Era isso. O canto não me adentrou os ouvidos hora nenhuma, ele estava dentro da minha cabeça o tempo todo, feito fosse minha consciência acalentando meu cérebro cansado.
Eu sei o que vocês estão pensando. Eu também pensei que estivesse ficando louco. Não precisava ser grande intelectual pra saber o que aquele canto significava e pra saber que era impossível. Mas impossível é uma palavra abstrata, sem valor algum. Tudo é possível, mas o egocentrismo do homem transformou em mentira tudo aquilo que ele não sabe explicar, nomeou de impossível todas as possibilidades mais fantásticas. Mas eu sei disso agora. Naquela noite eu nada sabia.
O barco foi seguindo um rumo próprio, movimentando-se rápido e só, contra o vento e contra a correnteza, contrariando todas as leis físicas que eu tinha como certas. Eu vi a estrela do norte ficando pra trás e soube imediatamente que deveria fazer algo para impedir. Mas o canto em minha cabeça me chamava, e eu ia como um rato farejando queijo, mesmo ciente de que estava indo direto para a ratoeira. Era uma consciência inconsciente, entende? Não adianta saber das coisas, se não há força para resistir e controlar a situação.
O mar a noite é escuro, nada se vê através das águas negras senão o reflexo da lua. Mas naquela noite sem lua, outro astro tomou seu lugar. Era uma estrela-do-mar, por assim dizer. Uma fada das águas, meio peixe, meio gente. A lenda que todo pescador sonha em encontrar, e estava ali, diante de mim, flutuando sobre as águas. Os cabelos dela eram de uma cor entre marrom e o dourado, a pele era branca feito folha de papel, e os olhos eram notívagos e hipnóticos. Eu a olhei por um minuto – que passou lento como se fosse um ano –, e quando o fiz o canto ficou mais alto e mais claro. Ela estava tentando me dizer algo, embora sua boca nem fizesse menção de se abrir.
“Feche os olhos” Eu a ouvi dizer dentro da minha cabeça. E assim eu fiz. Fechei os olhos pensando que ia ver tudo preto, mas minhas pálpebras pareciam que eram transparentes. Eu estava de olhos fechados, mas continuava a vê-la. Seus cabelos dançavam no vento, e os reflexos nas gotas de água que espirravam em volta dela lembravam confete de carnaval recortado em papel laminado. Eu estava maravilhado, quando percebi que ela se aproximava de mim, mais e mais. Senti que uma escola de samba passava no meu peito, quando os lábios dela tocaram os meus. Tinha o gosto do meu doce preferido, e os cabelos dela, que se enroscaram no meu corpo todo, tinham cheiro de praia. Ela me envolveu naqueles braços finos e eu me entreguei como uma virgem que se submete ao macho impassível.
Acordei estirado na areia, com o sol cegando meus olhos. Meu barco nunca foi encontrado, e ninguém sabe como eu cheguei á costa. Mas eu ainda sinto na boca o gosto do meu doce preferido, e quando fecho os olhos imagino a figura dela, sugando a minha existência para algum paraíso secreto nos sete mares. Sei que jamais a encontrarei novamente. Sereias são promíscuas, se aninham nos braços de qualquer pescador e roubam seus corações para si. Ela ficou com o meu. E eu fiquei apenas com a lembrança de uma noite de verão.
Essa não é mais uma história de pescador. Aconteceu de verdade comigo. Mas eu sei que você não vai acreditar...
"A paixão pode ser avassaladora.
Muitos amores começam logo os gatos saem a noite,
e acabam-se com o canto do cotovia"